Meditação sobre o dom da amizade: “Eu lhe desejo um amigo”

Reprodução: Série The Chosen

Segundo Anselm Grün (2018) desejar um amigo é mais do que desejar uma companhia; é desejar encontro. Na era da hiperconexão digital e da superficialidade das relações, o verdadeiro amigo tornou-se raridade - um tesouro silencioso entre os ruídos do mundo. O desejo de amizade revela a necessidade ontológica do ser humano de ser reconhecido e amado como pessoa. Desde Aristóteles, a amizade (philia) é vista como virtude que torna a vida digna de ser vivida. Contudo, na modernidade fragmentada, a amizade exige uma nova leitura: não apenas como laço social, mas como processo de individuação, de retorno a si por meio do outro.

A amizade é o espelho no qual o “eu” se descobre “tu”. O rosto humano do mistério divino - pois, assim encontramos no Evangelho escrito por João (15,15), Jesus chama os discípulos de amigos, elevando a amizade à dimensão da graça.

Jung afirma que o encontro humano, como um processo simbólico, revela conteúdos inconscientes, pois o amigo verdadeiro é aquele que, ao estar diante de nós, reflete aquilo que ainda não sabemos sobre nós mesmos. Nesse sentido, a amizade participa do movimento da individuação, caminho pelo qual cada um integra suas sombras e reconhece suas luzes. O pai da Psicologia Analitica ainda afirma que “ninguém se ilumina imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a própria escuridão” (JUNG, 1964).

No encontro com o amigo verdadeiro, nos deparamos com um espelho que é capaz de refletir aquilo que não desejamos e não conseguimos ver sozinhos e na maioria das vezes não aceitamos como parte da nossa estrutura psíquica que precisa ser integrada e ressignificada, sobretudo em uma cultura que valoriza a autonomia e o isolamento emocional. Literalmente, a amizade tornou-se um ato de coragem: permitir que o outro veja a verdade de quem somos, com nossas grandezas e feridas. E o amigo é aquele que não teme a sombra do outro, mas a acolhe, ajudando-a a se transformar em luz.

Para Viktor Frankl, fundador da Logoterapia (abordagem psicoterapêutica focada em ajudar as pessoas a encontrar sentido na vida), o ser humano é movido pela busca de sentido - e esse sentido se revela frequentemente no encontro pessoal. Frankl (2003) afirma que “o ser humano é aquele que se esquece de si mesmo em direção a uma causa ou a uma pessoa amada”. A amizade, nessa perspectiva, é um espaço de autotranscendência: deixa-se o centro do próprio ego para abrir-se ao mistério do outro.

Reprodução: Série The Chosen

Desejar um amigo, portanto, é desejar alguém que nos recorde o essencial: que a vida tem sentido mesmo nas dores, que o amor é mais forte do que o desespero, e que a presença de um “tu” pode devolver cor ao “eu”. A amizade torna-se um antídoto contra o niilismo contemporâneo, que reduz o outro a instrumento de prazer ou utilidade. O amigo, na leitura frankliana, é um testemunho vivo de sentido - alguém cuja existência confirma que vale a pena existir.

Martin Buber, em Eu e Tu (1923), apresenta a relação como essência do ser humano. Para ele, a vida autêntica se dá na dimensão do “entre”, onde o eu e o tu se encontram sem máscaras. O amigo é esse “tu” que nos faz existir de verdade. Diferente do mundo do “isso” - das coisas que usamos e manipulamos, a amizade pertence ao mundo do “Tu eterno”, onde Deus habita. Assim, desejar um amigo é desejar uma epifania do divino no rosto humano. Na amizade, o amor não se confunde com posse ou fusão; é diálogo, reciprocidade, presença gratuita. É o espaço em que se pode dizer: “Eu sou porque tu és.” A verdadeira amizade é sacramental - torna visível a presença invisível de Deus.

Toda amizade autêntica nasce da vulnerabilidade compartilhada. Ninguém é amigo por virtude, mas por humanidade. Aquele que deseja um amigo deseja, antes de tudo, um coração que saiba suportar a verdade. Amigo é aquele que nos ajuda a suportar a nós mesmos. É o companheiro da travessia, o Simão Cireneu das horas escuras, o eco que devolve sentido às palavras ditas no deserto. Como lembra Henri Nouwen (1994), “a amizade não cura a solidão, mas a torna habitável”. No tempo do individualismo, desejar um amigo é um ato contracultural - um grito silencioso de fé no humano. E talvez por isso a frase “Eu lhe desejo um amigo” soe hoje quase como uma bênção: o desejo de que alguém nos reconheça sem exigir, nos escute sem julgar, e nos ame sem pedir explicações.

O dom da amizade é uma das expressões mais profundas da presença divina no mundo humano. É no rosto do amigo que o mistério de Deus se torna visível e concreto. Entre o eu e o tu, habita o Infinito. Por isso, desejar um amigo é desejar também o Reino - aquele espaço onde cada pessoa é acolhida como imagem viva do Amor.

Na tradição cristã, o próprio Cristo é o arquétipo da amizade perfeita: Ele que chama, escuta, perdoa e permanece. Assim, desejar um amigo é desejar participar desse mesmo amor que se doa sem medida. A amizade, no fim, é a mais alta forma de comunhão entre almas que caminham - um lembrete de que ninguém se salva sozinho.

Eu recomendo para você os seguintes livros, os quais utilizei para escrever esse artigo - nada como mergulhar na fonte daqueles que, com tanta coragem, desejaram ter amigos verdadeiros”.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. 27ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

GRÜN, Anselm. Eu lhe desejo um amigo. Tradução de Maria Stela Gonçalves. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

NOUWEN, Henri J. M. A amizade no caminho espiritual. São Paulo: Paulinas, 1994.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos. São Paulo: Paulus, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. João 15,15. Tradução CNBB, 2018.

Autor: Pe. Adriano da Levedove

Padre, psicólogo, pedagogo e estudioso da psicologia analítica junguiana.
Contato: alevedove@gmail.com

“O melhor lugar para se estar é no Seu Coração, Jesus!” – Pe. Adriano da Levedove

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