O mandamento esquecido: “Sejas protagonista da tua história”

Vivemos em uma era saturada de vozes externas que ditam como pensar, o que desejar e o que temer. Em meio a tantos mandamentos sociais, religiosos e culturais, há um que raramente é proclamado, mas que poderia transformar profundamente a existência humana: “Sejas protagonista da tua história”. Esse mandamento não foi escrito em pedra ou pergaminho, mas pulsa como um chamado silencioso nas profundezas da alma. Ele é um convite à maturidade, à consciência e à responsabilidade pessoal – não um gesto de egoísmo, mas de fidelidade à própria essência.

Carl Gustav Jung (2013), advertia há mais de um século: “aquele que olha para fora, sonha; aquele que olha para dentro, desperta”. Descobrir-se protagonista da própria vida é, portanto, o despertar de uma consciência nova: a de viver com sentido, liberdade e autenticidade.

Ser protagonista não significa viver sem medo, mas assumir a vida como um processo dinâmico, imperfeito e verdadeiro. É tornar-se autor da própria narrativa, capaz de reconhecer que o enredo da existência não é imposto de fora, mas escrito dia após dia com escolhas, gestos e atitudes.

Ser protagonista é não fugir da responsabilidade diante do erro, mas aprender com ele, reescrever capítulos, pedir perdão e seguir em frente. Jung (2019) ainda afirmava, “erros são, no final das contas, os fundamentos da verdade”. Os erros não definem o ser humano, mas educam-no, pois cada pessoa traz em si luz e sombra, virtudes e contradições.

A coragem de olhar para o que foi reprimido ou negado é o início da jornada interior. A sombra, que contém sentimentos como inveja, raiva, orgulho ou desejo de controle, quando reconhecida, pode ser integrada à totalidade da vida, libertando o sujeito da projeção e do ressentimento. Jung (2008), insistia que “aquilo que não enfrentamos em nós mesmos, encontraremos como destino”. A verdadeira liberdade nasce da integração e não da repressão: ser livre é acolher as próprias sombras, não projetá-las nos outros.

Cada etapa vivida, inclusive as dolorosas, faz parte da construção de quem se é. Isso não significa repetir traumas, mas dar-lhes novo sentido. Viktor Frankl (2017), recorda que “entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a resposta. E, nessa resposta, está o nosso crescimento e liberdade”. Reconhecer limites não é fraqueza, mas sabedoria. Aceitar a vulnerabilidade liberta o ser humano da necessidade de provar valor pelo desempenho e o protege da ilusão da onipotência.

Arthur Schopenhauer (2005), afirmava: “felicidade e sofrimento são inseparáveis da existência humana”. Aceitar essa verdade é o início da liberdade interior, a capacidade de viver segundo uma bússola interna, e não conforme o ruído das expectativas externas.  Kierkegaard (2002), também advertia: “a maior infelicidade do ser humano é jamais ter sido ele mesmo”. Viver de modo autêntico é viver em coerência com o que se é, e não apenas com o que o mundo espera que se seja. Freud (2010) observou com lucidez: “a maioria das pessoas realmente não quer a liberdade, pois liberdade envolve responsabilidade, e a maioria tem medo da responsabilidade”. Desde cedo, aprendemos – de forma sutil ou explícita – a obedecer, agradar e adaptar-nos, confundindo submissão com virtude. Mas viver em obediência cega é uma forma lenta de morrer por dentro. Esse esquecimento do próprio protagonismo é um anestésico existencial: pode até trazer uma sensação de segurança, mas adormece a alma e impede o exercício da escolha. Em síntese, quem vive assim apenas existe, não vive. O mandamento esquecido, “Sejas protagonista da tua história”, possui também uma dimensão profundamente espiritual. Se o ser humano foi criado à imagem do Criador, recebeu igualmente o dom da liberdade e o chamado à responsabilidade. Deus não nos quer espectadores da própria vida, mas participantes do mistério da existência. Santo Irineu de Lião (2021), ensinava: “a glória de Deus é o ser humano plenamente vivo”. E o plenamente vivo não é o ser perfeito, mas o autêntico – aquele que integra luz e sombra, fé e dúvida, força e fragilidade. Viver plenamente é responder a um chamado íntimo, silencioso e radicalmente pessoal. O protagonismo não é um ponto de chegada, mas um movimento contínuo. Todos os dias o ser humano se encontra diante de encruzilhadas: permanecer no velho ou arriscar o novo, repetir o padrão ou escolher a liberdade, calar-se ou expressar a verdade. Como recorda Jung (2013), “não somos o que nos aconteceu, somos o que escolhemos ser”. Ser protagonista é assumir a dor de crescer, reconhecer que nem tudo está sob controle, renunciar à ilusão de que os outros vão nos salvar e viver com integridade, mesmo que isso custe rupturas e solidões. Esse mandamento não se impõe, ele convida. É um sussurro da alma, um chamado à lucidez e à presença. Em um mundo que deseja o ser humano distraído e conformado, ele recorda: a vida é tua, e ninguém pode vivê-la por ti. A travessia é longa, mas necessária. Haverá dor, sim, mas também verdade, liberdade e sentido. Respira fundo, escuta, e deixa emergir a voz interior, talvez esquecida, que te recorda, com firmeza e ternura: “Sejas protagonista da tua história”. Não amanhã, não depois. Agora.

Referências

Recomendo para você os seguintes livros, os quais utilizei para escrever esse artigo, nada como mergulhar na fonte daqueles que se tornaram protagonistas da própria existência. 

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2020.

FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

IRINEU DE LIÃO, Santo. Contra as Heresias. São Paulo: Paulus, 2021.

JUNG, Carl Gustav.. O homem e seus símbolos. 17. ed. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

JUNG, Carl Gustav.. A psicologia do inconsciente. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano: A doença para a morte. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. 2 v. São Paulo: Unesp, 2001.

Autor: Pe. Adriano da Levedove

Padre, psicólogo, pedagogo e estudioso da psicologia analítica junguiana.
Contato: alevedove@gmail.com

“O melhor lugar para se estar é no Seu Coração, Jesus!” – Pe. Adriano da Levedove

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